terça-feira, 8 de dezembro de 2009

A Obra que não fiz

Na tela traço uma linha
e a uma linha traço outra,
e mais outra,
...mas nas linhas que traço
uma direita não faço.
Linhas repletas de notas,
notas cheias de amarelo,
amarelo barrento e cinzento
linhas direitas e tortas

Traço uma linha
e a uma linha traço outra,
às linhas junto cores, manchas e tons,
utilizo o lápis e o pincel,
junto água no acrílico
faço gravura, desenho e pastel.

Traço uma linha
e a uma linha traço outra,
e com as cores que juntei
nos desenhos que quis
a paleta sujei...mas obra, não fiz

Cerveira, 1986

PASSARAM JÁ MAIS DE 100 ANOS SOBRE ESTES ESCRITOS



"Um povo imbecilizado e resignado, humilde e macambúzio,
fatalista e sonâmbulo, burro de carga, besta de nora,
aguentando pauladas, sacos de vergonhas, feixes de misérias,
sem uma rebelião, um mostrar de dentes, a energia dum coice,
pois que nem já com as orelhas é capaz de sacudir as moscas;
um povo em catalepsia ambulante, não se lembrando nem donde vem, nem onde está, nem para onde vai;
um povo, enfim, que eu adoro, porque sofre e é bom,
e guarda ainda na noite da sua inconsciência como que um lampejo misterioso da alma nacional,
reflexo de astro em silêncio escuro de lagoa morta.
Uma burguesia, cívica e politicamente corrupta até à medula, não descriminando já o bem do mal, sem palavras, sem vergonha,
sem carácter, havendo homens que, honrados na vida íntima,
descambam na vida pública em pantomineiros e sevandijas,
capazes de toda a veniaga e toda a infâmia, da mentira à falsificação,
da violência ao roubo, donde provém que na política portuguesa sucedam, entre a indiferença geral, escândalos monstruosos, absolutamente inverosímeis no Limoeiro.
Um poder legislativo, esfregão de cozinha do executivo;
este criado de quarto do moderador; e este, finalmente,
tornado absoluto pela abdicação unânime do País.
A justiça ao arbítrio da Política,
torcendo-lhe a vara ao ponto de fazer dela saca-rolhas.
Dois partidos sem ideias, sem planos, sem convicções,
incapazes, vivendo ambos do mesmo utilitarismo céptico e pervertido, análogos nas palavras, idênticos nos actos,
iguais um ao outro como duas metades do mesmo zero,
e não se malgando e fundindo, apesar disso,
pela razão que alguém deu no parlamento,
de não caberem todos duma vez na mesma sala de jantar."

Guerra Junqueiro, 1896.

domingo, 8 de novembro de 2009

Creio nos anjos..

Creio nos anjos que andam pelo mundo
Creio na deusa com olhos de diamante
Creio em amores lunares com piano ao fundo
Creio nas lendas nas fadas nos atlantes

Creio num engenho que falta mais fecundo
de harmonizar as partes mais dissonantes
Creio que tudo é eterno num segundo
Creio num céu futuro que houve dantes

Creio nos deuses de um astral mais puro
na flor humilde que se encosta ao muro
Creio na carne que enfeitiça o além

Creio no incrível nas coisas assombrosas
na ocupação do mundo pelas rosas
Creio que o amor tem asas de oiro amen

- Natália Correia -

quinta-feira, 15 de outubro de 2009

Momentos

Recordo um fim de tarde…algures
Esperando a hora do regresso,
de um regresso indesejado.
Uma vontade enorme de parar o relógio para que este não assassinasse aquele momento, assolava-me o pensamento.
Mas o relógio não andava… cavalgava sem piedade, e eu não queria perder aqueles momentos duma infinita doçura.
Os passarinhos beberricavam no lago e bailavam na procura de pão.
Eu olhava, contemplava o entardecer, meditava…
Que mais podia desejar…
Pouco interesse tinha a conversa, o fundamental era a contemplação, a presença, a companhia…
…tu, ali tão perto.


Um dia de Março de um ano qualquer

sábado, 20 de junho de 2009

A cidade e as cores

A cidade e as cores.
A cidade que se desencontra nas veias íngremes de uma latência em ascensão.
No topo, um mastro de identidade. Porém, difusa.
A cidade engole-nos pela saturação de corpos estanques, que acelera sem que se dê conta.
Move-nos em ziguezagues e, nos traços labirínticos, comove-nos pela desconcentração do olhar.
Ela é rígida. Advinha-se um rio, um mar, vida a vermelho. E, outras vezes, pálida por se aceitar no desencontro.
A cidade nas tuas mãos.
Concertando um resto de nós.
Amanhã, voltarei a vê-la pelas tuas mãos.

Vasco Arizmendi

Com a Rosa Mota